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Crônica do Mês

Engenho de pinga

25 fevereiro 2010 - 00h00

Osvaldo Piccinin

Havia poesia nas palavras do meu avô quando versava sobre a produção de cachaça. Sua paixão por esta centenária bebida, principalmente aquelas produzidas em engenhos artesanais, era do conhecimento de todos que o cercavam.

Na nossa região, estes alambiques, mais conhecidos por “engenhos de pinga”, eram raros, mas os poucos que existiam, produziam cachaça de ótima qualidade. O engenho que ficou em minha lembrança, situava-se no sítio vizinho ao nosso, mais conhecido por Sítio dos Peruchi.

Bem junto à fábrica, entre moendas rangedeiras carcomidas pelo tempo, por onde escorria a adocicada garapa, ficava o tonel da cachaça já produzida. Tratava-se de um enorme barril de carvalho com capacidade para três mil litros.

Uma enorme torneira de madeira por onde saia a aguardente o adornava conferindo-lhe grande charme, apesar da rusticidade. O cômodo que o abrigava era escuro; apenas um bico de lâmpada pendente num fio ensebado pelas fezes de moscas caseiras, nos fornecia lampejos de luminosidade.

O telhado sem fôrro tinha visão direta com as estrelas. Suas paredes de tijolos sem reboco e cobertas por teias de aranhas completavam o bucólico cenário. O móvel – um único banquinho de madeira - usado pelo vendedor para sentar-se enquanto enchia os garrafões de meu avô, era o que demais luxuoso existia! Um único copo de vidro que parecia nunca ter visto sabão, usado na degustação da purinha, passava de mão e mão e de boca em boca.

Gozado que todos os cachaceiros que conheço, emitem um som vindo do fundo da garganta atestando a boa qualidade do produto e quase sempre acompanhado de algum comentário do tipo: “Boooá”, me dá mais um gole! Nossa condução era a carroça do nono.

A distância de nosso sítio até ao engenho era curta, mas parecia demorar uma eternidade no pacholento andar do Cigano – seu burrinho de estimação. Saíamos com o sol a pino e voltávamos para casa ao entardecer, e nessa jornada entremeada por uma soneca, eu me deliciava com as histórias contadas por ele - sempre muito engraçadas!

Ele me dizia que, para sabermos se a cachaça era de boa qualidade ou não, tinha que fazer uma coroa de borbulhas no copo quando servida, e esta coroa não poderia se desfazer tão rápido. Descrevia com sabedoria a variedade ideal da cana a ser utilizada. A Cayana - era recomendada pela doçura da garapa e pela maciez de sua casca.

Parece uma piada conhecida, mas trata-se de um fato verídico: ao perguntar por que não cheirava a pinga antes de beber, ele, no alto de sua sabedoria etílica, me disse: - Se eu cheirar antes de tomar me dará água na boca, e como gosto de cachaça pura, não cheiro - mando pra baixo direto. Simples assim! Imagino que aquele ambiente pouco higiênico, sem aconchego e emoldurado numa misteriosa penumbra; às margens de um riacho rodeado de frondosos jequitibás e bambuzais, aguçava o nosso desejo de provar a “marvada”.

No meu caso, era só meio copo - o mais que suficiente para tontear um guri de dez anos - e matar os vermes da barriga, segundo meu sábio nono! Até hoje faço questão de visitar um engenho de cachaça artesanal. O cheiro de garapa em fermentação e o aroma de cachaça pura e sem produto químico emanado do velho tonel de carvalho, me fazem viajar no tempo!

E VIVA O VELHO ALAMBIQUE DE PINGA!

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