Tudo que é bizarro ou muito estranho atrai e chama a atenção. Isso aciona um centro de seu cérebro para que você preste atenção na imagem ou na mensagem. Muitos artistas de rock e de cinema, modelos e criadores de propaganda tiram proveito disso. Ministro aulas de clínica de bovinos há 41 anos e posso afirmar que as doenças que provocam sintomas bizarros e muito evidentes são mais fáceis de ensinar e ser lembradas pelos alunos do que aquelas que manifestam sinais comuns, pois estes frequentemente passam despercebidos.
Tive aulas com um experiente professor de doenças infecciosas que, embora tivesse fala mansa e pouco teatral, possuía uma enorme capacidade de contar histórias das enfermidades de animais. Eu ficava hipnotizado por seus relatos. Uma das que mais chamou minha atenção foi a da pseudoraiva (falsa raiva), também conhecida como “doença da coceira” ou doença de Aujeszki, o húngaro que isolou seu vírus causador pela primeira vez, em 1902.
Poucos dias após se contaminarem com o vírus, os bovinos começam a assumir atitudes muito estranhas. A mais chamativa é a coceira violenta e sem parar do flanco (próximo da mama ou dos testículos), do costado, do quadril, da cabeça e das pernas. Isso pode ocorrer por meio de lambeduras, raspagem da pele em obstáculos, ou mordidas, de tal forma que o animal acaba arrancando pedaços de pele e carne. Feridas enormes e sangrentas não deixam dúvida da automutilição. Da dó!
Durante essa fase, que pode durar de seis horas a dois dias, os animais se mostram muito excitados, mugindo e apresentando crises convulsivas, como se fosse um tipo de ataque epilético, além de ficarem andando em círculos, como o Tio Patinhas na sua “sala de preocupações”. Alguns animais torcem o pescoço para trás, como se estivessem mirando estrelas. Isso é seguido de paralisia e queda do animal, que permanece ali até a morte, normalmente registrada entre 12 e 48 horas após o surgimento dos sintomas. É apavorante!
Surtos recentes
O vírus pode entrar no organismo dos bovinos por meio de pequenas feridas na pele, na boca ou mesmo pelas narinas. Em seguida, ele atinge o sangue e aí se multiplica. Por meio de pequenos nervos, chega ao cérebro, provocando neste órgão, encefalite, e, em sua membra, meningite. Chama a atenção uma forte irritação no centro da coceira, situado no cérebro, que gera todos os transtornos já citados.
Vários bovinos podem ficar doentes de uma vez só, tornando as perdas mais significativas. A pseudoraiva já foi descrita em todas as regiões brasileiras, tanto em gado de corte quanto de leite. As últimas vítimas ocorreram ainda neste ano e levaram vários bovinos à morte, no município de Pinhão, Paraná. Mas o “xis” da questão é que essa doença não é típica de bovinos e sim de suínos, que transmitem o vírus para o gado. Bois doentesnão conseguem passar a enfermidade para seus semelhantes, dependendo dos suínos para isso. Já o porco transmite a doença para seus pares, bovinos e ocasionalmente ovinos, cães e gatos.
Porcos de mamando a caducando podem ter a doença. Os leitões até 30 dias de idade têm febrão, excitação, agitação e babação, mas não a maldição da coceira. Geralmente, não escapam com vida. Os leitões maiorzinhos apresentam um tipo de pneumonia e um ou outro sobrevive. Já os adultos são mais resistentes, mas podem abortar, e ficarem inférteis. Aí está o problema: por conseguirem conviver com o vírus maldito, podem mantê-lo na população e espalhá-lo para outros rebanhos, caso sejam vendidos ou misturados.
A doença não aparece do nada e de graça nos bovinos. Sempre ocorre quando o gado convive com porcos criados extensivamente. Foi o que aconteceu no Paraná. As reses pastavam tranquilamente ao lado de 137 suínos, soltinhos da silva. O exame mais detalhado na porcada adulta identificou que vários deles estavam infectados com o vírus mortal para a boiada. Frente a isso, o Mapa não teve outra alternativa: sacrificou, sem choro nem vela, todos os 137 animais, sem qualquer chiadeira do proprietário cabisbaixo e triste.
Muitos rebanhos de suínos brasileiros, criados industrialmente, têm de conviver com a pseudoraiva, mas essa doença já foi erradicada nos melhores planteis, a duras penas. Para tal, os criadores têm de eliminar toda a fonte de infecção, sacrificando os doentes, incinerando ou enterrando os animais mortos, abortados e afins em uma vala profunda, com muito cal e reza brava. Os reprodutores portadores do vírus também entram na dança. Além disso, os animais não contaminados e comprovadamente negativos podem ser vacinados. Isso para não falar do ambiente de criação que tem de passar por constantes desinfecções e limpeza apurada. Haja!
A “coceira” ataca de vez em quando no Pantanal, pois os porcos-monteiros que vivem alongados no meio do gado também podem ter o vírus. Não tem muito o que fazer. Mas fora disso, porcos devem ser criados presos e longe do seu gado precioso, diferente do que aconteceu em Pinhão. A fazenda dos sonhos de Monteiro Lobato, em que os animais convivem felizes para sempre, está muito longe do ideal sanitário. Cada bicho no seu canto, pois a ameaça de um pode também ser desgraça do outro.